QUANDO A MEMÓRIA SE TORNA PRODUTO
Recentemente, a Nestlé relançou seu famoso Chocolate Surpresa – um ícone das décadas de 1980 e 1990, descontinuado em 2003.
O lançamento gerou burburinho: por um lado, jogou os consumidores das Gerações X e Millennial no gostoso sentimento da nostalgia; por outro, houve quem dissesse que o chocolate “não tem o gosto da minha memória”.
O caso, sabemos, não é isolado. A Colgate resgatou a famosa pasta de dentes Kolynos em uma versão limitada. A Pepsi redesenhou seu logo para remontar à versão dos anos 1980. As balas Valda realizaram um movimento semelhante.
A memória está virando produto – mas o que isso realmente significa?
A memória do que não aconteceu
Diz a História que, logo após as 1ª Guerra Mundial, em 1919, as crianças do interior de Schleswig, na Alemanha, tinham lembranças muito particulares do conflito. Recordavam-se de soldados correndo pelas calçadas, com casacos que se estendiam até os pés, repletos de franjões e botões dourados. Os soldados, diziam as crianças, se equilibravam debaixo de um enorme Pickelhaube – uma espécie de capacete de ferro, preto e dourado, em cujo topo havia uma enorme ponta de lança.
Quando ouviu os relatos, o historiador George Mosse ficou impressionado. Isso porque tanto os casacos com botões quanto o Pickelhaube eram prussianos, e haviam sido banidos do exército alemão por volta de 1860 – quando nem os pais daqueles meninos de Schleswig haviam nascido.
As memórias das crianças alemãs não eram um retrato fiel do passado. Eram as memórias dos outros – dos avós, dos jornais, dos livros de história. Eram as memórias que mereciam ser lembradas.
E mesmo falsas, eram bem reais.
Se há um século as crianças lembravam um passado que não viveram, hoje fazemos algo parecido – só que com filtros, feeds e algoritmos.
Quais memórias merecem ser lembradas?
Em 2024, um estudo da Neural Computation revelou que nosso cérebro é capaz de guardar cerca de “2.5 pentabites de memória”.
É muito, mas tem limite.
Para sobreviver ao excesso de informações, sempre registramos nossa memória para além de nossas mentes: os diários, as pinturas, as fotos etc. Mas em um contexto de hiperinformação, em que nos deparamos com centenas de mensagens todos os dias, temos muitos outros elementos para virar memória: o meme, o show, a música, o beijo, a fofoca, o bastidor, a propaganda.
No mundo digital, como a maioria dos eventos acontecem online, a memória está se digitalizando. E, com isso, está se estetizando. Os museus são feitos para a performance da fotografia. Os pratos do cardápio também. E com isso estamos preservamos a experiência aesthetic, o cenário instagramável, o quadro que não vimos, o restaurante que nem entramos.

Acabamos preservando a memória que nem vivemos. O resto, jogamos fora.
Não muito diferente das crianças alemãs, estamos selecionando as memórias que merecem ser lembradas. Mesmo que elas não sejam tão reais assim.
A estetização e a digitalização da memória podem acabar por matá-la. Em um festival, gravamos 40 minutos de vídeo e, com isso, podemos “esquecer” o que vivemos naquele momento – afinal, a memória está ali, registrada na nuvem. Terceirizamos a memória para o HD externo, agora temos mais espaço para outras lembranças.
Mas quando vamos voltar àquele vídeo de 40 minutos?
A memória do festival se estetizou em um conteúdo para as redes sociais – e, com isso, morreu ali mesmo, engolida pelo próximo vídeo da For You.
O Contra-Ataque: a materialização da memória
O fato de que nossas memórias estão em risco já foi percebido pelos consumidores – que estão atrás de um “retorno ao analógico” e à materialização das lembranças. As Polaroids e Techpix voltaram com tudo entre a Geração Z, e seus registros estão sendo colados em geladeiras e quadros – bem visíveis, e bem lembráveis.
Tudo ganha força à medida em que os grandes marcos de progresso em nossa sociedade parecem cada vez mais distantes – dando origem ao que chamamos de Colecionadores de Conquistas, ou seja, aqueles consumidores que, na impossibilidade de comprarem uma casa ou um carro, se satisfazem nas pequenas vitórias do cotidiano. Leia mais no nosso report.

Materializar a memória ainda é estetizá-la, ainda é transformá-la em algo visualmente agradável, performático. As geladeiras pontilhadas de polaroids e bottoms caem muito bem no TikTok. Mas a memória materializada, espalhada pelos cômodos da casa, é também um lembrete do que o consumidor tem conquistado – memórias que compõem uma coleção afetiva e que testemunham que a vida, no fim das contas, está sendo bem vivida.
A materialização da memória, portanto, é uma forma de os consumidores capturarem seus momentos de vida de forma estetizada, mas com propósito. É o consumidor dando vida ao seu progresso e às suas experiências, ao mesmo tempo que liberta seu passado da mediação das telas e eletrônicos.
E as marcas com isso?
As marcas, claro, entenderam a demanda. A Kodak Charmera – uma câmera de chaveiro – possibilita dar vazão às memórias de um jeito simples e prático, guardando recordações sem ocupar espaço. Já a Guardei.co transforma os simples desenhos de crianças em exclusivos livros de arte contemporânea – transformando as vivências da infância em uma memória decorativa.
É estético, mas está materializado – e, com isso, vivo.
Por outro lado, há aquelas pessoas que têm aproveitado toda essa busca por memórias autênticas e, de certa forma, idealizadas, em oportunidade de abrir o seu próprio negócio. Como é o caso do Paolo, com a loja de “de tudo um pouco”, Bégê. Transformando sua vida em mercado, todos os itens vendidos por lá tem conexão direta com suas histórias. E é através desse envelope que ele gera exclusividade para cada pecinha de seu acervo.
Até onde deve ir a memória como produto?
O relançamento do Chocolate Surpresa ou o resgate das memórias afetivas da Kolynos mostram o poder estratégico em usar o passado como ativo de marca.
Mas esse movimento também reacende uma questão delicada: quando uma marca revive uma memória, ela não está apenas mexendo com o afeto; está redesenhando a nossa memória.
E aqui voltamos às crianças de Schleswig.
Assim como elas lembravam uma guerra que nunca viveram, moldadas pelas imagens que receberam, será que também não estamos nos lembrando daquilo que as marcas nos ajudam a enquadrar?
Não porque seja mentira, mas porque a memória, sempre viva, sempre imperfeita, depende de imagens, símbolos e narrativas para existir.
E quem domina esses símbolos tem, inevitavelmente, algum poder sobre o que “merece ser lembrado”.
O desafio das marcas e da publicidade não é esquecer o passado, mas é entender como fazer isso sem sequestrar as experiências individuais. Sem transformar nostalgia em manual.
No fim, memória não é só o que aconteceu, mas o que aceitamos lembrar.
E, num cenário em que marcas, plataformas e algoritmos disputam o nosso passado, talvez a pergunta mais importante seja: de quem é a memória que estamos sentindo?


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