Crise da Autoria: pensar e sentir continuam sendo um território exclusivamente humano

Quando a IA transforma criação em produção instantânea, não é a tecnologia que ameaça a autoria – é a ilusão de que pensar pode ser simplificado.

A ascensão da IA colocou a autoria humana em xeque. Essa crise não acontece porque a máquina “cria melhor”, mas porque cria rápido demais – textos, imagens, análises e até estratégias são produzidos em segundos.

Isso produziu a sensação de que pensar é um processo “automatizável”, como se a construção de sentido fosse linear, sem desvios, hesitações ou retornos. Criou-se uma dimensão em que estamos confundindo velocidade com complexidade.

Freud dizia que o ego humano sofre cada vez que descobre que não é o centro do mundo. Ele chamou isso de golpes narcísicos: Copérnico, Darwinista e a própria psicanálise, cada um tirando um pouco do nosso pedestal. Durante décadas, agarramos a ideia de criatividade como território seguro, quase sagrado: o diferencial humano por excelência.

Mas estamos chegando agora em um quarto golpe: o da criatividade.

Mas, como aponta Lúcia Santaella, a IA inaugura um possível quarto golpe narcísico: desafia a ideia de que criar é algo exclusivamente humano.

De repente, não somos mais os únicos a produzir textos, imagens e ideias. E isso nos força a revisitar a pergunta essencial: o que, afinal, significa “autoria” hoje?

E aqui está o ponto central: a IA opera por padrões, não por consciência. Ela calcula probabilidades, mas não interpreta tensões culturais, não lê subtextos, não percebe ambiguidade. O humano vive nessas rupturas que a máquina não alcança: empatia, pertencimento, sensibilidade, justiça, moral, desejo, fascínio. E o tempo nos atravessa sempre – nos forma, nos dobra, nos transforma.

O risco não é a eficiência da máquina, mas o efeito colateral: começamos a acreditar que pensar dá trabalho demais – quando, na verdade, é esse trabalho que nos diferencia. A IA não acessa a camada do imprevisível, do simbólico, do afetivo, do contraditório – territórios que moldam a forma como percebemos o mundo.

Só é possível compreender verdadeiramente as pessoas ao olharmos, não para o que elas dizem, mas para o que elas sentem.

O trabalho humano em pesquisa e estratégia vive justamente disso – de interpretar o que não está dito, de sustentar incertezas, de transformar contradições em significado. A complexidade não está no volume de dados, mas na capacidade de atravessar nuances e decidir a partir delas.

São essas tensões (entre o que sentimos, buscamos e tememos) que nascem as Narrativas Humanas. E é a partir delas que realmente produzimos pesquisa, análise, sentido e estratégia.

Por isso, quando falamos de pesquisa, estratégia e análise – atividades que dependem de ambiguidade, leitura de subtexto, intuição e capacidade de enxergar o não-óbvio – a máquina tropeça. Complexidade não é acumular dados, mas interpretar o invisível.

E isso continua sendo um gesto profundamente humano.

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